quinta-feira, 22 de julho de 2010

Mãos sujas de sangue

Vão acabar com a galinha ao molho pardo. Não sei se vocês sabem do que se trata, mas posso garantir que é uma das melhores formas, se não a melhor, de garantir dignidade gastronômica a uma simples galinha. No entanto, como se utiliza sangue (da própria) em sua preparação, sangue “ é rico em componentes que propiciam a rápida multiplicação de micro-organismos” e não há fórmula ao mesmo tempo simples e legal de obtê-lo e transportá-lo (fiquei sabendo também que é crime matar galinha no quintal!), a vigilância sanitária quer acabar com o molho pardo,com um pedaço da nossa cultura e outro talvez maior da infância de muita gente.

Prefiro as bactérias. Sinceramente. O que talvez tenha a ver com o fato de que prefiro que galinhas sejam mortas e que as casas tenham quintal.

Além disso, se exterminarmos os malditos micro-organismos, além de comermos plástico e elevarmos o Mac Donalds a alta gastronomia, quem nos defenderá se houver mesmo uma guerra dos mundos?

É preciso resistir, portanto, nós com a nossa galinha e os franceses com seus queijos deliciosamente podres. O lema do estandarte pode ser inspirado na afirmação heróica da velha Dany, dona e cozinheira de um pequeno restaurante em Paris: não se iludam, o sabor do que vocês comem vem da gordura, e das minhas mãos sujas.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

ECA!

Pergunta difícil: alguma hora alguém vai poder falar mal do estatuto da criança e do adolescente sem ser acusado imediatamente de ter cometido, como diria o Windows, um erro fatal? Ou ao menos, teremos a chance – poderia se dizer democrática – de dar um grito de basta à histeria calçada de boas intenções que se forma ao seu redor? Espero que sim.

Para que vocês fiquem na torcida comigo, vou lembrar algumas coisas: semana passada, ficamos sabendo que na montagem de Despertar da Primavera, clássico da dramaturgia alemã sobre a adolescência, uma atriz não poderá mostrar os seios por ser menor de idade; o novo filme de Rosane Svartmann sobre os embates sexuais da puberdade, o qual provavelmente, independente de sua qualidade artística, ajudaria meninos e meninas a enfrentar com maior leveza tais embates, foi proibido para menores de 14 aos, afinal, obviamente, está cheio de referências a sexo (a vida de qual adolescente de que planeta não tem pornografia, linguagem obscena e violência?); nos museus do Rio, em exposições de Victor Arruda e outros artistas, deparamos com a figura de um guarda armado protegendo as crianças das obras (pode ser o inverso, mas eu me lembro daquele monte de crianças correndo pelos corredores e salas do Museu Picasso e penso que elas estão muito mais protegidas, ao menos da ignorância, do que as nossas).

Enfim, poderia dar inúmeros exemplos até vocês ficarem cansados ou eu num completo mal-humor. Acho que não precisa. A censura é sempre visível, suas intenções claras como água, e há sempre alguém disposto a regular a liberdade dos outros, sob qualquer pretexto. De qualquer modo, incomoda ver nossos garot@s serviram de álibi ao que há de pior na sociedade brasileira.

Incomoda pensar que em sua defesa, os impedem de escutar, ver, falar, pensar. Protegidos pelo estatuto, os falsos moralistas e a hipocrisia disfarçada de bom senso defendem a si mesmos, impedindo que nossas crianças e adolescentes cresçam com a liberdade e até mesmo o risco necessários para que se tornem, como diz o cartaz do colégio cristão aqui em frente, cidadãos dignos e capazes. Impedindo também, e esta é a parte trágica, que tais "menores" aprendam a se defender dos seus abusadores, especialmente daqueles que alegam agir em seu nome.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Que droga

Mais uma vez, como quase todos os dias, as drogas estão nos jornais. Desta vez é a Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento que divulga uma carta em defesa da liberalização da maconha, enquanto outro grupo de estudiosos reafirma a necessidade peremptória de tudo proibir, inclusive o álcool e o tabaco, definitivamente (Fico com medo do que será proibido depois, afinal, como ensinava uma velha pichação nos muros de Salvador, até virgindade dá câncer).

De um lado, os neurocientistas afirmam que a maconha tem efeitos benéficos. Do outro, o Presidente da “Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas”, o psiquiatra Carlos Salgado argumenta (vale a pena citar) que: “Existem tantas alternativas, tanto para o controle da dor, quanto para o controle do apetite que não precisamos lançar mão de um indivíduo fumando maconha dentro de um hospital” (“Não existe droga benéfica, diz associação”, FSP, Cotidiano, 14 de julho)

Lembro até de um amigo que numa farmácia, ao cruzar com uma distinta senhora e sua cestinha com seis caixas de Valium, exclamou: “Aê, hein minha tia, eu fumo só um baseado no fim de semana e o drogado sou eu!”

O fato, absolutamente banal, é que nos drogamos. Dentro ou fora da lei. Todos nós, e o ser humano em geral desde o princípio dos tempos. Talvez hoje, é verdade, em maior quantidade ou freqüência, ou de forma mais danosa. Mas este é um fato que dificilmente podemos atribuir às substâncias em si, afinal algumas delas, como o álcool, estão na praça há milhares de anos.

A questão é quais serão as permitidas e quais as proibidas e neste caso as neurociências e a psiquiatria das evidências podem dar alguma ajuda, mas os psicanalistas, psicólogos, sociólogos, antropólogos, juristas, e muitos outros que vivem atormentados por ter que lidar com o sofrimento e a miséria humanos para muito além das evidências, também gostariam de dar seus palpites, para não mencionar os economistas, contadores e marqueteiros, que mesmo sem querer deveriam ser convocados a nos ensinar algo sobre o poder das drogas, em especial o poder financeiro, talvez o mais assustador deles.

Por hoje, quanto ao tema da liberalização (que não por acaso lembra liberalismo e, portanto, mercado), fico apenas me perguntando se não seria mais realista e talvez mesmo justo se legalizássemos tudo e os psiquiatras e laboratórios farmacêuticos simplesmente processassem os traficantes por concorrência desleal ou exercício ilegal da profissão.

[Devo confessar que escrevi com medo de fazer “apologia do crime”. Pretendo apenas fazer, como psicanalista, apologia da fala]